sábado, 19 de junho de 2021

GALOPE DA NÊGA DO DOCE

 

(Crédito da fotografia: https://www.uninassau.edu.br/noticias/voce-conhece-girias-cearenses)

 GALOPE DA NÊGA DO DOCE

            (Admmauro Gommes & Riccardo Guerra)

 

 

Amigo Ricardo, rei da Burarema

Há coisa que sempre encanta o matuto

Um bebo na praça fumando charuto

Em um batizado depois da novena.

O mundo é grande a vida é pequena

Há muita ciência pra gente pescar

Um chá de carqueja pra desinflamar

A queda do bicho parece um coice

Danou-se, danou-se a Nêga do doce

Nos dez de galope na beira do mar.

 

Famoso Admmauro do reino encantado

No Recanto das Águias não fica ao léu

Na pedra do reino seu nome é gravado

Como um grande poeta filho de Xexéu

Mais de vinte livros ele já escreveu

Tem a força de Hércules ou de um Teseu

No meio dos vinte: “Cinco Poetas e um Luar”.

De jaqueira lhe faço um convite arretado

Para em Maceió com tudo acertado

Cantarmos galope na beira do mar.

 

Quem tem um amigo não vive à toa

Está rodeado e nunca está só

Pode viajar para Maceió,

Campina Grande e João Pessoa

E vara o mundo chegando em Lisboa

Na força do bicho chamado jaguar

E com bacamarte dá tiro no ar

Ao lado do amigo que é seu Ricardo

Que lá de Jaqueira é o maior bardo

Nos dez de galope na beira do mar.

 

O mundo endoidou, mas não me convenço

Que até minha "Nêga do Doce" Danou-se

Partiu proferindo palavras, encantou-se

Para um mundo dos poetas ao qual eu pertenço.

Convidei Admmauro para ir me ajudar

E saímos os dois pelo mundo na procura

Não tínhamos nenhuma noção por onde começar

Encontramos o tabuleiro e a Nêga a vadiar

E ela não estava nem aí para tanta frescura

Ficamos cantando galope na beira do mar.

 

Você que conhece a fala dos reis

E sabe da grota que mora o brejeiro

Como é que um médico vem do estrangeiro

E vai entender o seu jaqueirês?

Vai se confundir com o nordestinês

Nessa confusão pode se engasgar

Na hora da cura é capaz de matar

Não vai entender caxumba e querela

“Pobrema de estambo e da espinhela”

Nos dez de galope na beira do mar.

 

O meu jaqueirês é uma língua arretada

Até o estrangeiro aprende depressa

Três dias de feira e ele logo a professa

Ouvindo a língua matuta e falada

Depois o doutor toma umas quatro lapadas

Da boa “temperada” do Alfredo Colar

Depois do efeito se dana a conversar

Miolo de pote e outras coisas também

Com os matutos se assim o convém

Nos dez de galope na beira do mar.

 

O seu idioma que é universal

E tem os traços de uma tradição

Careta e gesto em toda expressão

Trazendo um brilho que é sem igual

Quem não entender que é natural

Se engasga na pinga na porta do bar

Confunde caatinga e “cheirim” de gambá

Caxumba, papeira e cabeça de prego

Passando colírio para quem é cego

Nos dez de galope na beira do mar.

 

No meu idioma tudo é muito bacana

Meus irmãos matutos e uma nova língua

No meio da feira tomando uma pinga

Tendo como tira-gosto uma madura banana

Matuto é cabra sabido e muito legal

Em todo lugar ele gosta de estar

Observando e sempre aprendendo

Com sua viola pra cima e pra baixo

Eu também sou matuto por isso entendo

Nos dez de galope na beira do mar.

 

O matuto tem tal compreensão

Que as nuvens do céu sabem entender

Se amanhã é de sol ou vai chover

Se é dia de plantar milho ou feijão.

Ele sabe governar uma nação

Mesmo com um jeito estranho de falar

Há quem não consiga com ele conversar

Mas é um cabra tão inteligente

Que do Brasil um já foi até Presidente

Nos dez de galope na beira do mar.

 

Anatomia de matuto jaqueirense é assim:

Pau da venta, zói, queixada e perna é canela

Beiço, cangote, suvaco, viria e guela

Mas não gosta das coisas cheias de pantim

Tem um jeito bonito da gota de falar

É bucho, chibata, cambito e pêia

Tripa gaiteira, buchada e zurêia

O bacamarte sempre tá pronto pra atirar 

Mas não mangue dele pois vai se arretar

Nos dez de galope na beira do mar.

 

Eu hoje fiquei malassombrado

Num pesadelo eu vi a caipora

E acordei depressa, sem demora

Pensei ver o Saci bem ao meu lado

Eu acho que tava vendo tudo errado

Rodrigues era um gato maracajá

Vital Corrêa imitava um sabiá

O Coronel cantava uma embolada

E Joel dava aquela gargalhada

Nos dez de galope na beira do mar.

 

Poetas preferem, pois, praticar poesia

Particularmente pelo prazer permanente

Pensando poder prosseguir previdente

Perfazendo percurso pela porfia

Permita-me, porém, parar para pensar

Preciso poetar por proficiência

Peço-lhe perdão pela paciência

Palavras prolíficas prefiro procurar

Pronto, parei profundamente para praticar

No dez de galope na beira do mar.

 

 

Caro amigo Ricardo que é Guerra

Mas proclama a cultura de uma paz

No galope você provou que é demais

Cantando as belezas de sua terra

Cada verso que você encerra

Tem uma riqueza no seu linguajar

Por isso terminemos com esse pelejar

E não posso mais acompanhar você

Pois me faltam palavras na letra “pê”

Nos dez de galope na beira do mar.

 

 

“Explicandum”:

 

galope à beira-mar foi criado pelo repentista cearense José Pretinho. Conta-se que ele, após perder um duelo em martelo agalopado, foi retirar-se à beira-mar, e ali, vendo e ouvindo o barulho, imaginou o som de um galope. E fez os versos de onze sílabas (hendecassílabos), com a mesma estrutura de décima (estrofe de dez versos). Manteve o esquema rímico ABBAACCDDC usual no martelo agalopado.


 “Danou-se Nêga do Doce” é um ensaio etnolinguístico e sociolinguístico a ser publicado em breve por Ricardo A. Guerra da Silva

Bloco Jaqueirense (fotografia de João Bosco)

 

                                 BLOCO "O BOI DE BIÉ

    (Ricardo A. Guerra da Silva, titular da Cadeira nº 2)

 

O jaqueirense Bié era uma pessoa muito animada. Quando chegava à época do carnaval, tocava, ou pelo menos tentava tocar, uma sanfona velha e desafinada já bastante desgastada e com o fole furado. Mesmo assim, era um grande folião e entusiasta do reinado de Momo.

Era um homem simples, pobre e humilde que ganhava a vida como agricultor e trabalhador no corte da cana de açúcar nas safras sazonais, na região de miséria do Ópio de Pernambuco, na Mata Sul Pernambucana. Morava na antiga Rua do Cemitério e nas sextas-feiras sempre fazia à noite, em sua casa, uma dança, para tomar umas e outras talagadas da branquinha destilada da Saccharumofficinarum (pinga) e alegrar a vizinhança.

O que ele mais gostava mesmo, era quando chegava fevereiro e com ele o Carnaval. Então era a época de desfilar com os seus blocos: A Ema de Bié, O Boi de Bié e A Laussa de Bié, ou La Ursa (personagem popular do nosso carnaval de rua que assusta às crianças e pede dinheiro; teve origem na expressão la ursa, animal que um domador italiano levava pela corrente às ruas a pedir dinheiro). Assim, nasceu o refrão “A Laussa quer dinheiro quem não der é pirangueiro”, caindo o “R” de "Ursa" na linguagem popular, como costuma acontecer.

Cada dia de Carnaval Bié saía com um bloco diferente animando e fazendo o seu folguedo. Comandava a “orquestra” com a sua sanfona furada, acompanhado de um melê (espécie de surdo, feito num toco de árvore usando uma borracha de câmara de ar de caminhão como pele), um triângulo, um reco-reco e um violão.

Num desses longínquos Carnavais do passado, Bié, junto com o seu bloco “O Boi de Bié”, tomou o trem de passageiros e foi até a cidade de Marayal, desfilar e cantar pelas ruas de lá. As pessoas gostavam de ver e sempre lhes davam bebidas e algum dinheirinho. A festa corria solta e animada, e tome bebida, cerveja, cachaça Rainha Pernambucana, bate-bate de maracujá etc.

Quando O Bloco entrava em algum estabelecimento comercial, pedindo bebida e lhe serviam cachaça ou bate-bate, Bié sempre dava para o Boi beber, ou melhor, a pessoa que estava carregando a fantasia do boi. Quando, porém, lhes ofereciam cerveja gelada, ele a bebia.

Meio-dia, sol quente, calor de rachar tamanco de madeira, então o Boi foi se embriagando e quando o bloco estava bem no meio da rua principal da cidade, apertou uma diarreia e deu vontade do Boi defecar.

E aí, o que fazer?

O Boi não teve dúvidas, se acocorou no meio da rua e, lá se esvaziou; só que um policial que estava observando a festança viu tudo.

Quando todos já saíam de fininho, a “autoridade” disse:

- Alto lá, estão todos presos! Eu vi o que o Boi fez e isto não está correto, Já pra cadeia todos vocês!

Prenderam todos do bloco, músicos, passistas e o Boi; somente depois, com a intervenção de um político local, soltaram-se e voltaram para Jaqueira.

Pensam que Bié ligou pra isso?

De jeito nenhum.

No outro dia, ele já estava desfilando garbosamente com outro dos seus blocos, dessa feita, com A Ema de Bié.